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DE GUARDA LIVROS A GUARDA CONTAS

   Ainda pude conhecer, em meados da década de 50 do século que acaba de expirar, quando mal saía das fraldas, as últimas portas dos velhos empórios. Depois, o “armazém” passou a chamar-se supermercado, o “caixeiro” virou balconista, a “prateleira” deu lugar à “gôndola” a caderneta transformou-se em “cartão de crédito”, os “mantimentos” deram lugar aos “gêneros de primeira necessidade”. E aquele senhor de óculos na ponta do nariz, esquecido atrás de uma escrivaninha surrada, caligrafia exuberante, escriturando grossas brochuras com uma pena, ou caneta-tinteiro? Apesar de, então, ainda nem saber as primeiras letras, recordo-me de que ele sempre iniciava a página da brochura com uma data e uma frase pouco variável. Ainda tenho na retentiva a primeira letra da sentença, um “M” todo bordado seguido de um “e” bem talhado, depois um “r” muito caprichado e assim delineava-se, calma e diligentemente, o termo “Mercadorias”. Em seguida, um “a” pendia solitário logo na linha de baixo para anteceder a uma outra palavra menor, porém, com um “C” igualmente todo bordado, seguido novamente de um “a”, um “i” muito imponente, um “x” gracioso, surgindo lentamente o vocábulo “Caixa”. Então completava-se a sentença: “Mercadorias a Caixa”.

     O senhor que escrevia vagarosa e cuidadosamente aquilo fazia prodígios de um pintor renascentista, mas era conhecido por um binômio que não se encaixava bem no meu entendimento: “guarda-livros”. “Guarda”, na minha pueril concepção da época, era um homem que portava uma arma e era encarregado de reprimir qualquer ataque à segurança de pessoas ou de um patrimônio; “livros” eram o fruto do trabalho de um escritor ou dos autores didáticos e neles jamais se escrevia. Para se escrever existiam os cadernos. Que denominação mais esquisita a daquele funcionário do armazém ou da “venda”! Era um “guarda” que, no máximo, após o expediente, “guardava” papéis na gaveta da escrivaninha e, ao contrário de todos que escreviam em cadernos, escrevia em livros.

     Afinal, se a evolução deixou no passado a “venda” o “caixeiro”, a “caderneta”, os “mantimentos”, os “secos e molhados”, onde estará hoje o guarda-livros? É de se entender que ele também tenha crescido no tempo e se transformado em um outro tipo de funcionário. Os livros de caligrafia caprichada e diligente são hoje escriturados pelas impressoras acopladas ao computador. É também o computador que realiza todos os cálculos outrora produzidos pela cantilena da manivela de uma máquina de somar. As pilhas de volumes dos livros diário, razão, inventário, entradas e saídas de mercadorias, atualmente não passam de imagens em baixo relevo que a tecla ” Page Down” vai desfilando vertiginosamente no monitor. Em meio a toda essa parafernália de inovações teria se afogado o velho guarda-livros?

     Na idade adulta, abracei uma carreira cujo profissional que a exerce não é chamado por denominação muito mais sugestiva que a de guarda-livros, pois no termo falta um sufixo pomposo como “ólogo”, “atra” , “logista” ou coisa semelhante. Devemos nos contentar com um humilde “or ” ou um apagado ” ista”, pois não somos tão importantes assim. Apenas observamos quando está abalada a saúde da empresa e temos a obrigação de sermos os primeiros a gritar, vivemos monitorando índices de liquidez, registramos exaustivamente todo tostão que entra ou sai do patrimônio, temos os nossos cabelos encanecidos precocemente na guerra de não afastarmos os olhos dos monitores, ou de nos dobrarmos diuturnamente sobre as revistas, para que o empresário cliente não sofra qualquer penalidade fiscal, o que se acontecer seremos nós os únicos culpados. Nossos ” pacientes” nada têm de pacientes, porque a dor que sentem, e que nos cabe curar, não os deixa prostrados em um leito, muito pelo contrário, transforma-os, às vezes, no tenebroso minotauro da famosa lenda cretense, levando-os a rugir pavorosamente pelos labirintos do nosso escritório buscando desesperadamente uma morfina para a mais terrível das dores humanas: a dor no bolso.
      Poderíamos, então, chamar o quase folclórico guarda-livros daqueles remotos tempos, de antecessor do atual contabilista, ou do moderno contador? O velho funcionário do empório nada mais fazia que anotar em partidas dobradas as operações do empresário, não se preocupando com previsões, projeções, fluxos de caixa, ativos e passivos circulantes, sabe Deus lá mais o quê. Seu chamado ” sucessor”, com o advento da informática não mais tem a humilde tarefa de guardar livros, mas sucedeu-lhe com o ingrato mister de guardar… contas!