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“SOBRE A MULHER E O BIQUÍNI: O EXERCÍCIO DA CIDADANIA EM TEMPOS DE TREVAS!

Em 2014 negociei com o artista plástico Ayrton Pyrtz a criação de um painel revolucionário na parede da casa de estilo antigo, que tem o número 297 na Avenida Caetano Marinho, Centro Histórico. Cabalisticamente a soma do número é 7. Mãos à imaginação propus que fossem pintados Che Guevara, Leila Diniz e São Francisco de Assis.

 

Recebi uma chuva de críticas, inclusive de um homem forte da ala conservadora da Igreja Católica que me chamou de herege. Dodora Bartholomeu esposa de João Brant, proprietários do imóvel, disse-me achou muito bonito e que não via nada de anormal em colocar os 03 (três) juntos . Disse-me ela, católica fervorosa, por DNA da “Famiglia Bartolomeo”:“a fé das pessoas está acima de ídolos, mas todos vêm à terra para cumprir uma missão”. Fiquei animado e pouco me lixei para as críticas.

 

Lamentavelmente, 07 anos depois, sumiram com o painel, que ficou debaixo de tinta barata. Mas, publico aqui o depoimento de Janaína Diniz, filha de Leila Diniz e Ruy Guerra. Ela é cineasta e tão revolucionária quanto a mãe. Leiam e tirem suas conclusões.

 

Meu lugar de fala é de uma filha do biquíni. É que eu fui uma barriga grávida exposta na praia, quando a barriga grávida era escondida porque era sinônimo do pecado e não devia ser vista. A barriga grávida no biquíni fazia lembrar o ato sexual que deu origem àquela barriga, que vem a ser o ato que gera a vida. Enfim, incongruências.

O fato é que a moral exigia das mulheres dessa época o impossível: disfarçar uma barriga indisfarçável. Enfim, 47 anos se passaram desde que eu circulei em uma barriga e num biquíni que escandalizou um país moralista, de uma moral ditada pela ditadura militar. Andando bem mais pra trás, as mulheres desobedientes, as que não se curvavam ao papel determinado pra elas, que pensavam diferente, eram executadas, como exemplo de punição. O feminicídio se dava batizado como “caça às bruxas”. Eram queimadas na fogueira as que pensassem diferente do que deveriam pensar.

 

Para que a humanidade se libertasse disso, sutiãs foram queimados, pílulas anticoncepcionais foram liberadas, as mulheres conquistaram o direito de trabalhar fora, sendo que o trabalho de casa ainda hoje é exigido da mulher. Conquistaram o direito ao voto. Olha só, houve um tempo em que não se podia votar e as barrigas grávidas se tornaram símbolo da vida, motivo de orgulho. Mas eis que os retrógrados saíram dos seus armários – onde provavelmente sempre permaneceram –, que saem envergonhados da sua moral castradora. Talvez, envergonhados por algumas décadas. Diante da primeira oportunidade retomaram seu orgulho e ditaram as regras pra vida alheia. Encontraram como porta-voz um suposto mito que está mais para uma de nossas lendas: a “Mula sem cabeça”. Um representante de baixa capacidade intelectual, mas que vende o discurso dessa falsa moral e em troca disso muita gente anda fingindo que acha graça, aceitando a destruição de tudo, normalizando a violência e graças a acharem graça disso, nós andamos de marcha a ré na velocidade da luz.

 

Em menos de um ano recuamos em décadas de conquistas, em séculos de evolução, no respeito um ao outro. Se hoje toda nudez vem sendo castigada, se as nossas maravilhosas bruxas icônicas são queimadas como são nossas florestas e nossos povos originários, estão queimando nossos direitos, nosso Estado laico. Se queimam a nossa justiça, se queimam a nossa constituição, se a gente é castigado nu ou vestido por não seguir uma determinada doutrina – por não reproduzir o que nos ditam os atuais ditadores –, se tentam calar a nossa voz, se censuram a nossa arte, o fato é que não está dando se postar de biquíni, não pelo ato em si, já que o corpo feminino enquanto objeto de desejo de consumo sempre foi muito bem-vindo pelos ditadores da moral. Não está dando pra gente se postar de biquíni pelo fato de que nós somos cidadãs brasileiras que vivemos no Brasil medieval, colonial, ditatorial e diante das milhares de reconquistas que urgem, realmente dá um trabalho enorme ser cidadã no Brasil de hoje. Ah, mas nós somos!

 

Há quase cinco décadas o biquíni simbolizou uma libertação. Hoje, com tanta destruição que exige da gente um estado de alerta e de luta por todos os direitos roubados, dia sim e dia também, o biquíni por hora está simbolizando uma alienação e não está dando pra gente se postar de biquíni. Infelizmente, digo eu, filha de um biquíni, super, hiper, mega postado, mas o que não está dando mesmo nos tempos de hoje é pra gente se dar ao luxo de não ser cidadã”.

 

Observação: a atriz Marieta Severo criou a filha de sua melhor amiga, a atriz e modelo Leila Diniz que morreu em um acidente aéreo na década de 70, quando tinha apenas 27 anos.

Marieta Severo, em um depoimento antigo disse: ” A maior dor de todas é ver a falta que Leila faz para ela. Leila não foi criada pela mãe, então, tudo o que ela não queria era que sua filha passasse essa falta, não queria ter uma filha e ela não estar. Então isso é muito terrível, muito cruel”.

Janaina, que hoje tem 47 anos, foi criada pela Marieta Severo e Chico Buarque até os dez anos de idade, até que o pai pudesse criá-la.

 

Foto: Painel pintado por Ayrton Pyrtz desapareceu debaixo de tinta barata!